Excelência técnica é também excelência intelectual

Ao tratar todos os estudantes como potenciais universitários, o país acabou desconsiderando a riqueza dos caminhos técnicos e a pluralidade de vocações que uma economia complexa exige

Por Erik Horner, diretor no Colégio Humboldt, São Paulo

Durante décadas, o ensino técnico brasileiro foi visto como uma alternativa menor, voltada à formação de mão de obra de baixa qualificação. A imagem de cursos ‘voltados à fábrica’ ainda ecoa em parte do imaginário nacional, alimentada por uma tradição que separa o saber intelectual do saber prático e, com isso, desvaloriza ambos. É uma herança profunda de nosso passado escravista, em que o trabalho manual foi associado à servidão e não à inteligência. 

Essa visão distorcida ajuda a explicar por que o país, mesmo com potencial produtivo e tecnológico, convive com uma escassez crônica de profissionais qualificados nos setores industrial, comercial e agrícola.

A consequência é dupla: produtividade estagnada e mobilidade social bloqueada. O jovem que não segue para a universidade encontra um vazio formativo entre a escola e o trabalho. E aquele que chega à universidade, muitas vezes, não encontra nela o que o mercado e a sociedade precisam. 

Criamos uma narrativa de sucesso centrada no bacharelismo, como se o diploma universitário fosse a única via legítima de realização, e deixamos de investir na educação profissional como eixo estratégico do desenvolvimento nacional.

Essa negligência não é recente. Desde as reformas educacionais dos anos 1980, o Brasil concentrou esforços na ampliação do acesso ao ensino básico, mas sem construir percursos diferenciados de formação. Investimos em quantidade de anos escolares, não em diversidade de itinerários. 

Ao tratar todos os estudantes como potenciais universitários, o país acabou desconsiderando a riqueza dos caminhos técnicos e a pluralidade de vocações que uma economia complexa exige.

A realidade de outros países

Nos países que mais avançaram na integração entre educação e economia o quadro é outro. A Alemanha, por exemplo, construiu seu modelo dual sobre uma ideia simples e poderosa: a prática é parte essencial do conhecimento. 

Nesse sistema, o estudante é simultaneamente aluno e aprendiz, vinculado formalmente a uma empresa que o contrata, o acompanha e o remunera durante o período de formação. Ele não está à espera de inserção no mercado, pois já vive o trabalho como ambiente de aprendizagem. Alterna períodos na escola e na empresa, articulando teoria e prática em um mesmo processo formativo que envolve empregadores, instituições e Estado. Todos reconhecem que formar bem é uma responsabilidade compartilhada.

A diferença central não está apenas na estrutura curricular, mas na visão de mundo. Na Alemanha, a prática é nobre porque representa o domínio consciente de um ofício, o saber que produz valor. No Brasil, ao contrário, o trabalho manual continua sendo visto como etapa inferior, quando na verdade é nele que se sustenta a maior parte da economia real.

Revalorizar o ensino técnico significa, portanto, mais do que abrir vagas, significa reconstruir o significado social do trabalho.

Os dados internacionais confirmam o potencial dessa transformação. Segundo o relatório Education at a Glance 2024, da OCDE, 44% dos alunos do ensino médio nos países-membros estão em programas vocacionais, muitos deles com experiências práticas em empresas. No Brasil essa proporção é de apenas 14%, ainda distante da média global. 

Curiosamente, somos exceção positiva em um ponto: as mulheres já representam 56% das matrículas no ensino técnico, desafiando o estereótipo de que essas formações são predominantemente masculinas. O estudo mostra também que adultos recorrem cada vez mais ao ensino técnico como forma de requalificação, o que amplia seu alcance social e econômico.

Outra pesquisa recente, encomendada pelo Senac São Paulo ao Instituto Locomotiva, indica que 56% dos jovens brasileiros de 14 a 18 anos acreditam que um curso técnico os ajudaria muito a realizar seus sonhos de vida. Fica claro: há demanda social por uma educação que una propósito e empregabilidade, teoria e prática.

O problema não é a falta de interesse dos jovens, mas a escassez de caminhos concretos que articulem esses elementos de forma consistente.

Essa percepção dos jovens deveria provocar uma reação imediata das escolas e das empresas. São elas que, juntas, podem transformar a aspiração em trajetória, desenhando itinerários técnicos conectados às dinâmicas reais do trabalho. Onde essa parceria se consolida, a educação profissional deixa de ser um remendo e passa a ser um projeto de futuro.

Modelo dual

Nessa direção, experiências consolidadas de ensino profissionalizante mostram que é possível superar a falsa dicotomia entre formação geral e formação técnica. O Colégio Humboldt, por exemplo, atua há mais de 40 anos com cursos técnicos de Administração, Logística e TI em cooperação permanente com empresas, a maioria de origem alemã. O modelo dual que inspira essa trajetória reproduz a lógica do aluno-aprendiz: o estudante aprende em sala e no trabalho, inserido no cotidiano produtivo da organização que o forma.

Ao adotar o trabalho como princípio educativo, a formação técnica devolve sentido à relação entre estudo e produtividade. A escola deixa de ser um espaço isolado e passa a dialogar com o mundo real, sem subordinar-se a ele. A empresa, por sua vez, assume papel corresponsável na formação de competências, reconhecendo que investir em aprendizagem é investir em sustentabilidade econômica e social.

O futuro do Brasil depende de nossa capacidade de dar dignidade ao trabalho e inteligência à produção. Isso exige política pública, investimento e, sobretudo, mudança cultural. O país precisa deixar de medir conhecimento apenas por títulos universitários e reconhecer que a excelência técnica é também excelência intelectual. Só assim poderemos alinhar o desenvolvimento humano ao desenvolvimento econômico e fazer da educação profissional um verdadeiro projeto de nação.

Revista Educação | Outubro 2025.

5 Claves de Aprendizaje para la Sociedad 5.0

Como sabrás, las competencias clave que nacen del Perfil de salida responden a la necesidad de formar al alumnado en afrontar los principales retos y desafíos globales del siglo XX. En este sentido, la educación debe tener presente el desarrollo tecnológico que ha llevado a hablar de la industria y la Sociedad 5.0, una nueva fase planteada a partir de la cuarta revolución industrial. 

La digitalización y el desarrollo tecnológico ha popularizado la Sociedad de la Información y la Industria 4.0, pero la propuesta de una Sociedad 5.0 nació en Japón a partir de detectar las limitaciones del concepto anterior, para proponer un nuevo modelo socioeconómico. Una quinta revolución que tiene la esperanza de poner en el centro el ser humano y el medio ambiente. Es decir, apostar por una digitalización y un desarrollo humano y sostenible.

A continuación te contamos las 5 claves de aprendizaje para la sociedad 5.0:

Fomentar habilidades digitales y tecnológicas

Con una sociedad cada vez más digitalizada, es fundamental que el alumnado adquiera habilidades digitales sólidas. Esto implica enseñarles no solo a utilizar herramientas y tecnologías, que les resultan familiares, sino sobre todo a comprender los mecanismos y principios que las hacen posibles. La programación, la robótica y la alfabetización digital deben formar parte del currículo, brindando a los alumnos una base sólida para desenvolverse en un entorno tecnológico.

Promover el pensamiento crítico y la resolución de problemas

En la sociedad 5.0, la capacidad de analizar de forma crítica la información y resolver problemas complejos se vuelve aún más importante. En el aula, se deben fomentar actividades que desafíen a los estudiantes a investigar, evaluar evidencias y desarrollar soluciones innovadoras, a partir de situaciones reales. El pensamiento crítico y la resolución de problemas deben ser competencias transversales en todas las áreas curriculares. 

Desarrollar habilidades sociales

A medida que la tecnología se vuelve más omnipresente, también es esencial desarrollar habilidades socioemocionales en los alumnos. La empatía, la colaboración y la comunicación efectiva se vuelven fundamentales en un entorno cada vez más interconectado. El fomento de estas habilidades en el aula a través de proyectos colaborativos desde Primaria, actividades de debate y resolución de conflictos puede preparar al alumnado para los retos en la Sociedad 5.0.

Fomentar la creatividad y la capacidad de adaptación 

La sociedad 5.0 está impulsada por la innovación y la creatividad. Es fundamental que el alumnado desarrolle su capacidad para pensar de manera creativa, generando ideas originales y soluciones fuera de lo común. Además, la capacidad de adaptarse a los cambios y aprender de manera continua es esencial en un entorno en constante evolución. Las actividades que fomenten la creatividad, el pensamiento lateral y la flexibilidad mental deben integrarse en el currículo escolar.

Enseñar ética y responsabilidad digital

A medida que la sociedad 5.0 se desarrolla, surgen nuevos dilemas éticos y preocupaciones relacionadas con la privacidad y la seguridad en línea. El alumnado debe ser educado en los aspectos éticos de la tecnología y cómo utilizarla de manera responsable. Los temas de ciudadanía digital, derechos digitales y alfabetización mediática deben abordarse en el aula para promover una participación informada y ética en la sociedad digital.

Conoce más sobre este tema a través de los cursos que tenemos para ti. Como el curso “Aprendizaje Basado en Proyectos: acercándonos a una metodología activa”.

Fuenteblog.vicensvives.com

A Metamorfose

Renata Dini *

A Metamorfose[1], de Franz Kafka[2], é uma daquelas peças que nos deixa pensando muito depois de terminá-la. Não é apenas a história de um homem que acorda transformado em um inseto, mas uma profunda reflexão filosófica sobre a alienação, a identidade e o absurdo da existência humana.

De um ponto de vista existencialista, a transformação da personagem Gregor Samsa pode ser vista como uma metáfora da sensação de estar preso em uma vida que já não reconhecemos como nossa. Quantas vezes nos sentimos estranhos em nossas próprias peles, desconectados de quem somos, espectadores da nossa própria vida ou do que os outros esperam de nós? Gregor, ao se tornar um inseto, representa essa sensação extrema de desumanização, de se tornar algo que não se encaixa mais no mundo, nem mesmo na sua própria família.

Kafka nos confronta com uma ideia chave na filosofia existencialista: o isolamento do indivíduo. Gregor, na sua nova forma, é incapaz de se comunicar, de ser compreendido ou aceito. Este isolamento não é apenas físico, é existencial. Aqui é onde ressoa o pensamento de Jean-Paul Sartre[3] e a sua ideia de que “o inferno são os outros”. Gregor é rejeitado e temido, e apesar de permanecer o mesmo por dentro, sua aparência o condena à solidão e ao esquecimento.

Além disso, a Metamorfose também nos fala do absurdo, um conceito que Albert Camus[4] desenvolve na sua filosofia. A transformação do Gregor não tem explicação nem sentido, e esse é precisamente o ponto. Em um mundo absurdo, as coisas acontecem sem razão aparente, e nós, como seres humanos, somos forçados a enfrentá-las sem ter respostas. Gregor não questiona por que ele se tornou um inseto; ele simplesmente tenta se adaptar, continuar com sua vida. Mas, no final, o absurdo esmaga-o.

Gregor perde seu valor aos olhos da sua família quando não consegue mais trabalhar nem atender às expectativas sociais. Sua transformação física reflete uma verdade mais profunda: somos vulneráveis a perder nosso lugar no mundo quando deixamos de cumprir os papéis que nos impõem.

A Metamorfose é um alerta sobre a fragilidade da identidade e a desconexão entre o ser humano e o seu ambiente. Kafka nos lembra que, neste mundo cheio de normas, expectativas e julgamentos, a verdadeira tragédia é perder a conexão com a nossa própria humanidade, e nesse processo, ser esquecido ou descartado por aqueles que deveriam nos entender.

A peça de Kafka deixa-nos uma pergunta perturbadora: quanto da nossa identidade é definida pelos outros?

In Um Tonho/Tonha

* Professora Especialista na Rede de Taubaté.


[1] A Metamorfose (em alemão, Die Verwandlung) é uma novela escrita por Franz Kafka, publicada pela primeira vez em 1915.

[2] Franz Kafka (Praga, República Tcheca, 1883 — Klosterneuburg, Áustria, 1924): autor de romances e contos, considerado um dos escritores mais influentes do século XX. A maior parte de sua obra, como A MetamorfoseO Processo e O Castelo, está repleta de temas e arquétipos de alienação e brutalidade física e psicológica, conflito entre pais e filhos, personagens com missões aterrorizantes, labirintos burocráticos e transformações místicas.

[3] Jean-Paul Charles Aymard Sartre (Paris, 1905 – 1980): filósofo, escritor e crítico, conhecido como representante do existencialismo. Defendia que os intelectuais têm de desempenhar um papel ativo na sociedade.

[4] Albert Camus (Mondovi, 1913 – Villeblevin, 1960): escritor, poeta, filósofo, romancista, dramaturgo, jornalista e ensaísta franco-argelino. Atuou como jornalista militante envolvido na Resistência Francesa, situando-se próximo das correntes libertárias durante as batalhas morais do segundo pós-guerra. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957. Em seus trabalhos desenvolveu um humanismo baseado na consciência do absurdo da condição humana.

Reminiscências

Mário Quintana

A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores?
Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas…

In “Sapato florido” (1948)

Camões, 500 Anos

José Paulo Cavalcanti

Luís Vaz de Camões veio da pequena nobreza – assim se dizia, na época, dos nobres sem casas nem títulos em Portugal. Desde jovem, passava dias e noites pelas ruas entre pedintes, arruaceiros, prostitutas, desvalidos. Ou nas tabernas. E escrevendo versos, quando possível, às vezes em troca de gorjeta. Ou comida.

Era conhecido, pelas incontáveis rixas em que se metia, como Trinca-Fortes. Em uma delas, na noite da procissão de Corpus-Christi, golpeou com espada o pescoço de Gonçalo Borges, cárrego (responsável) dos arreios do rei. Acabou preso no tronco. Libertado por Carta Régia de Perdão, em 7 de março de 1553, teve que pagar quatro mil réis para caridade e foi obrigado a ir servir na Índia. Seria mudança definitiva, em sua vida. Um destino jamais sonhado por seus pais – Simão Vaz de Camões, capitão de nau; e Ana de Sá, dos Macedo de Santarém, doméstica.

Em torno dele, quase tudo é incerto. Sabe-se, dos serviços que prestou na armada portuguesa, que nasceu em Lisboa – ou Coimbra, ou Santarém, ou Alenquer. Talvez em 1523 ou, mais provavelmente, em 1524 (havendo ainda que sugira começos de 1525).

Tendo a lei portuguesa 1540, de 02/02/1924, definido que teria sido em 05.02.1524, agora completando essa data 500 anos. Estudou em Coimbra, entre 1542 e 1545, com o tio dom Bento de Camões, prior do Convento de Santa Cruz. Até que voltou para Lisboa. Mas a carreira das armas, logo percebeu, era mesmo das poucas opções que lhe restavam.

Para cumprir aquela sentença de perdão embarcou pouco dias depois, em 24 de março, na poderosa armada do capitão-mor Fernão Álvares Cabral. Para Goa (Índia). Ali, naquele mundo para ele novo, sofreu todas as agruras. Em expedição a Ceuta, perdeu o olho direito numa batalha. Em 1558, naufragou na foz do rio Mekong – costa do Sião (hoje, Tailândia). Salvou-se despido, como todos os demais sobreviventes, tendo em uma das mãos os primeiros versos de seu Os Lusíadas. Nesse episódio teria morrido uma chinesa, a quem Camões deu o nome poético de Dinamene, e para quem depois escreveria uma série de poemas, entre eles o famoso Soneto 48:

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,

Repousa lá no Céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste

Se lá no assento etéreo, onde subsiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

Alguma cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

Foi Provedor dos defuntos nas partes da China, desempenhando suas funções com não muita lisura, é de justiça reconhecer. E, vez por outra, frequentaria prisões. Por dívidas. Ou rixas.  Como dizia o próprio Camões, “Erros meus, má fortuna, amor ardente/ Em minha perdição se conjuraram”. Mas, sobretudo, nunca parou de escrever.

Em 1570, afinal, estava novamente de volta a Lisboa. Com as carências financeiras de sempre. Segundo se conta, sobreviveu durante algum tempo graças ao fiel Jau, trazido das Molucas. Esse escravo esmolava, de noite, pedindo pão para seu mestre. Importante é que Os Lusíadas avançava. Sob o patrocínio de d. Manuel de Portugal, devotou-se então à sagração de seu país – naquela que é considerada, consensualmente, a mais bela epopéia do século XVI.

edição princeps – assim se diz das primeiras edições de um livro – foi impressa na tipografia de António Gonçalves, em Lisboa, no ano de 1572. Com privilégio real de impressão por 10 anos e publicada com um benévolo (e corajoso) parecer censório de frei Bartolomeu Ferreira, sem data. Terá tido também licença da Mesa Inquisitorial – que, todavia, não foi impressa. O aparato paratextual é simples, 8.816 versos e 1.102 estrofes divididas em 10 cantos. Utilizando a divisão da divina Comédia, de Dante – que assim tem, como cantos, seus 100 livros. Há, hoje, cerca de 25 exemplares ainda existentes, em bibliotecas ou nas mãos de colecionadores. Talvez menos que 10 completos.

Até fins do século XIX, se acreditava ter havido duas edições princeps. Um mito devido a Manuel Faria e Souza – que (em 1639), ao comentar Os Lusíadas, confrontou dois volumes daquele mesmo ano de 1572; e verificou haver, neles, pequenas diferenças. Depois se comprovando terem sido bem mais que duas. Restando hoje assente que assim ocorreu pelo desejo de Camões, ou seu editor, em corrigir pequenas incorreções das impressões anteriores. Dando-se que, em alguns casos, foram sendo aproveitados conjuntos de páginas já impressas, antes, e não utilizadas. Fazendo-se, as correções, nas novas páginas impressas. Uma explicação que só se pode compreender pelos rudimentares sistemas de impressão daquela época.

Apesar de numerosos indicativos dessa edição princeps na comparação com as demais, e curiosamente, o que a identifica é um pelicano, à primeira página, com o bico virado para a esquerda do leitor. Além do pelicano, também um detalhe no terceiro verso da primeira estrofe, que começa por “E entre”; enquanto, nas versões corrigidas, começa por “Entre”. Essas edições de 1572 tornaram-se conhecidas, por isso, como “Ee” e “E”.

Camões tinha com ele, ao morrer, aquela que acabou tida como a primeira edição autêntica, deixada ao frei Joseph Índio, que o acompanhava num hospital de Lisboa. Esse volume é conhecido como Holland House – por ter estado em casa do general Lord Holland, em Londres, a partir de 1812 e por mais de cem anos.

Outra edição famosa, em Portugal, é a segunda ‒ conhecida como dos piscos. Surgida em 1584, dois anos após o fim do prazo do alvará que protegia a primeira (de 1572). Impressa pela tipografia Manuel de Lira, em Lisboa, e com licença do mesmo frei Bartolomeu Ferreira – responsável pela autorização da edição princeps. O nome jocoso dado à edição vem de uma citação, nos Lusíadas (Canto III, 65), sobre a “piscosa Cizimbra”. 

Sezimbra é uma vila portuguesa no distrito de Setúbal. Abundante em peixes, bom lembrar. Trata-se da primeira edição comentada de Os Lusíadas. Explicando a citação, o comentador, como referência aos pássaros que ali se juntam em passagem para a África, provavelmente se referindo ao Pisco-de-peito-ruivo (Erithacus Rubecula).

Camões segue a trilha de outras epopéias do passado.  Sobretudo a Eneida, de Virgílio; o que se vê até na comparação dos versos iniciais dos poemas: Canto as armas e o varão, Virgílio; e As armas e os Barões assinalados, Camões. Também a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Bem como a divina Comédia, de Dante. Além de numerosas epopéias surgidas em Portugal, no mesmo século XVI de Os Lusíadas, mas antes dele – como as de André de Resende, Manuel da Costa ou José de Anchieta; e manuscritos que circularam, antes de 1572, como os de António Ferreira e Jerónimo Corte-Real.

Nele temos o passado, com a exaltação das conquistas em que o povo português foi muito além do Mar Tenebroso. O presente, com o lamento pelo abandono das terras africanas por Portugal – de Safim a Azanos, de Azila a Alcácer Cequer; sem contar a ameaça turca, conjurada só na batalha naval de Lepanto, em 7 de outubro de 1571. Mas é sobretudo a antevisão de um futuro grandioso, na linha da Utopia do Quinto Império.

 “Para servir-vos, braço às armas feito; Para cantar-vos, mente às Musas dada” (Os Lusíadas, Canto X, 155). Pouco antes, em Desenganos, escreveu “Nascemos para morrer/ Morremos para ter vida/ Em ti morrendo”. Assim foi. Luís Vaz de Camões morreria em 10 de junho de 1580, pouco depois do desastre de Alcácer Quibir – em que desapareceu d. Sebastião, o Desejado, e Portugal passou a ter um rei espanhol. Foi enterrado na igreja de Santa Ana e seus restos acabaram transferidos, em 1894, ao mosteiro dos Jerônimos, onde repousam num túmulo esculpido em mármore bem na entrada. Consta que disse, ao morrer, “Ao menos morro com a pátria”.

ABL – Academia Brasiçleira de Letras – 03/2024.

Boneca Semiótica

Jards Macalé

Samba é sempre a mesma história
“nosso amor morreu na glória”
A boneca foi embora
Não obstante esqueceu o seu
Fantasma

A paisagem é uma floresta
De signos malignos que você desenhou
Paisagem de fim de festa
Rótulo roto vidro partido
Onde havia um sentido que você
Apagou

Você venceu com a lógica
Digital e analógica
Você não passa da progamadora
De repertório redundante da minha dor

Álbum “Aprender a Nadar” – 1974.

Prosodia

Oscar Conde

busco infeliz las huellas
de mi infancia. no queda casi nada:
una pilita de soldados de plástico,
la letra vacilante de mis compañeros
de séptimo haciéndome promesas
cien por ciento incumplidas,
la risa desafiante de mi tía Teresa
en la foto de un tiempo en que la creía eterna.

busco entonces vestigios de mi juventud.
busco y encuentro gotas de Spinetta,
una herradura del caballo apurado de la revolución,
una mancha de mate en el manual de Lesky,
letras de Brassens en castellano, una florcita
minúscula guardada en la página
en la que Manuel Mandeb conoce
a la primera novia de su mejor amigo.
en semejante empresa
no encuentro un solo rastro
de la chica que tanto me gustaba en la escuela,
de las manos con artroses de mamá, del torneo de ajedrez que a los quince gané sin merecerlo.

tampoco encuentro nada que me recuerde
lo que vino después:
amores puestos a prueba sin fortuna,
una voluntad obcecada y distraída,
un par de reportajes en la tele
dando respuestas que ni sé ni me interesan.

años y años, unos iguales a los otros,
en los que expliqué
con el mayor entusiasmo
los nombres de los meses en latín,
el aspecto verbal, las distintas
concepciones del destino en Grecia,
la construcción hinchado las pelotas,
el método inductivo, la diferencia
entre raíz y tema, la cuestión homérica,
la etimología de Júpiter, el modo
de citar bibliografía,
la postura reaccionaria de Antígona,
el rotacismo, la relativa
seriedad de la democracia ateniense.

en esos años siempre pensé
que estaba haciendo lo que quería
con la vida. y en cambio
era ella
la que un día tras otro
iba aplicando su cincel a mis formas.
uno puede conocer muy bien
la prosodia,
pero nunca decide del todo
dónde vienen a caer
los acentos.

Gramma – Revista de la Escuela de Letras de la Facultad de Filosofía, Letras y Estudios Orientales (V. 23, Nº 49, 2012)

23/04 – Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor

Paco Editorial

O Dia Mundial do Livro é um evento organizado pela UNESCO e comemorado todo dia 23 de abril. A data serve para promover o prazer e a importância da leitura dentro da sociedade como forma de conhecimento.

Além de ser uma comemoração em defesa dos hábitos de leitura, o dia também comemora a proteção dos direitos autorais e a publicação de livros como uma maneira de acesso a estes materiais.

Dia Mundial do Livro

A data escolhida para homenagear a literatura foi feita como uma maneira de recordar e também homenagear dois grandes autores mundiais que morreram em 23 de abril de 1616, William Shakespeare e Miguel de Cervantes.

O autor inglês William Shakespeare nasceu em Stanford, Inglaterra, na mesma data que veio a falecer posteriormente. William ficou famoso por ter escrito peças de teatro que se tornaram clássicos mundiais, como Romeu e Julieta, e Hamlet.

Mesmo tendo sido um escritor do século XVII, sua obra foi imortalizada em diversas adaptações cinematográficas, incluindo a animação da Disney “O Rei Leão” e centenas de tentativas em adaptar a história de amor entre Romeu e Julieta para os tempos atuais.

Shakespeare, que também era poeta, escreveu 38 peças e mais de 150 sonetos durante sua vida.

Um pouco antes de Shakespeare, nascia na Espanha o escritor Miguel de Cervantes Saavedra, na província de Alcalá de Henares. A primeira grande obra do autor foi o soneto “A la muerte de la reina doña Isabel de Valois”, supostamente publicado em 1569.

Entretanto, Cervantes só foi ganhar notoriedade em 1906, quando publicou o clássico Don Quixote pela primeira vez. A obra se tornou uma grande referência a literatura espanhola e é usado como indicação de leitura durante o estudo da língua, tanto na Espanha como para alunos estrangeiros que buscam aperfeiçoar o idioma.

Assim como Shakespeare, Cervantes teve sua obra imortalizada em diversas adaptações cinematográficas, sendo a mais recente de 2007 intitulada “DonKey Xote”, uma animação dirigida pelo espanhol José Pozo.

A imortalidade de suas obras fez com que fosse possível o acesso a estes clássicos da literatura séculos mais tarde, impulsionando jovens a descobrirem um pouco mais sobre a cultura literária, além de renovar a ideia de preservação destas insubstituíveis contribuições ao progresso social da humanidade.

Mesmo com o falecimento tendo ocorrido em 1616, o Dia Mundial do Livro foi apenas instituído em 1995, durante a realização da XXVIII Conferência Geral da UNESCO.

Todos os anos, escritores e editoras ao redor do mundo se reúnem para organizar eventos neste dia e promover não só seus trabalhos, mas a esperança de que um livro ainda possa ser capaz de mudar o destino de alguém.

Direito de Autor

No dia 23 de abril também se comemora a conquista pelo direito autoral. A medida visa proteger a imagem do autor e da obra para que ela possa usufruir dos benefícios comerciais e legais da exploração de suas criações.

O direito de autor se divide em dois conceitos: direitos morais e patrimoniais. Para efeitos do primeiro, é assegurado a autoria da criação da obra intelectual, sendo intransferível e irrenunciável.

Já os direitos patrimoniais estão relacionados à exploração comercial da obra intelectual, podendo ter o caráter de transferência ou de cessão de direitos a terceiros por meio de um contrato de licenciamento.

No Brasil, projetos audiovisuais que derivem da adaptação de obras publicadas devem apresentar o contrato de cessão de direitos para a exploração comercial no ato de inscrição do projeto em editais públicos de incentivo à cultura, sujeito a posterior análise por órgãos competentes.

A primeira lei de proteção aos direitos do autor entrou em vigor ainda em 1710 e foi sancionada pela Rainha Ana da Inglaterra. Até então, a lei dizia respeito apenas a livros, mais tarde, em 1735, sofreu sua primeira alteração para incluir também desenhos.

O aperfeiçoamento das leis se seguiu ao longo dos séculos e começaram a ser adotados também em outros países da Europa e América.

Domínio Público

Muitas dúvidas rondam a questão do domínio público, muitos realizadores que não podem prover recursos para pagar pela exploração comercial de obras mais atuais buscam este método para fazer suas adaptações.

É importante frisar que o domínio público se torna disponível após um período posterior a morte do autor.

A nível mundial, este prazo é de no mínimo 50 anos a contar do ano seguinte a morte do autor e está previsto pela Convenção de Berna, relativa à proteção de obras literárias e artísticas.

Mesmo que seja estipulado o mínimo de 50 anos para que o domínio público entre em vigor, diversos países têm suas próprias legislações a respeito do tema. No Brasil e em alguns países europeus, a espera é de 70 anos, após esse tempo, apenas os direitos morais devem continuar a ser respeitados.

A cessão de direitos antes de completar o prazo estipulado por lei

Caso os realizadores da possível adaptação queiram utilizar a cessão de direitos patrimoniais antes do prazo de 70 anos, o acordo deve ser realizado junto aos familiares mais próximos do autor, como filhos ou cônjuges que ainda estejam vivos.

Na falta destes familiares, deve ser contada a pessoa responsável pela preservação da obra do autor em questão.

Deve-se ter em mente, no entanto, que estas pessoas podem se negar a ceder os direitos da obra ou até mesmo exigir participar do processo criativo da adaptação como forma de cuidar dos direitos morais póstumos.

Toda decisão e acordo posteriormente feitos devem ter o aparo jurídico de um advogado especialista em direitos patrimoniais e de propriedade intelectual, a fim de que ambas as partes sejam beneficiadas da mesma maneira.

O direito de autor é reconhecido como um direito humano fundamental na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

E você, qual livro irá recomendar no próximo dia 23 de abril para impulsionar a difusão da literatura nas suas redes de amigos? Acompanhe a editora e fique por dentro dos nossos próximos lançamentos e das nossas antigas publicações também.

Acreditamos que o acesso à leitura deve ser cada vez mais simplificado, abrangente e transformador.

Paco Editorial – 23/04/2020

Cultura

Waldenir Caldas

Certamente, a mais a mais antiga e mais recente obra do homem é a cultura. Desde que existe como espécie até o estádio atual, ele jamais deixou de produzir. O uso das cavernas para abrigar-se das intempéries climáticas, os desenhos e pinturas feitos nas paredes desses abrigos, a fabricação de ferramentas primitivas, a descoberta de um pedaço de madeira como arma, o cultivo do solo para alimentar-se, a produção industrial automatizada, a construção de grandes edifícios, de antigas pirâmides, a realização de uma grande obra literária, a nave que vai ao espaço, o coração, o rim, o fígado e a córnea transplantados, a criação da democracia, o telefone, a televisão e o livro são algumas das realizações do homem. Tudo isto é cultura. A pornografia e a religião são, também, produtos da cultura humana.

Só o sentimento não é uma criação do homem. É algo inato nele. Mesmo assim, há diversas formas de se manifestar um sentimento. A vida e a morte são celebradas de formas diferentes de uma civilização para outra. O beijo na boca tem significados diversos – em alguns lugares ele tem a função de demonstrar o amor do homem pela mulher e vice-versa; entre as populações primitivas trobiandeses significa respeito, gratidão e admiração.

A cultura, enfim, é indefinível. Mas é a única obra perene do homem. Sem essa grande obra, o que seríamos? Não é possível imaginarmos nosso destino. Por isso, viva a bússola, viva a escrita e viva o papel. Eles orientaram o homem para o caminho certo: o caminho da comunicação. Nesse caso, viva o gesto também. enfim, que viva o homem, para continuar criando sua obra eterna: a cultura.

O que todo cidadão deve saber sobre cultura. São Paulo: Global, 1986.

A busca pela mãe de todas as línguas

OS TRÊS MIL IDIOMAS ATUAIS PODEM TER A MESMA ORIGEM. NA BUSCA PELA LÍNGUA-MÃE, PESQUISADORES DESCOBREM SEMELHANÇAS INCRÍVEIS QUE TALVEZ NÃO SEJAM COINCIDÊNCIAS.

Recolhido a seus aposentos numa certa noite do fim do século VII a.C., Psamético, um dos últimos faraós do Egito, que reinou de 664 a 610 a.C., refletia sobre as línguas que os homens falavam. Sua riqueza e diversidade, as semelhanças e as diferenças entre as palavras, as pronúncias, as inflexões de voz, tudo o fascinava – principalmente a ideia de que essa multiplicidade tinha uma origem comum, uma língua-mãe falada por toda a humanidade num tempo muito remoto, como afirmavam as lendas da época. O faraó imaginou então uma experiência engenhosa e cruel. Convencido de que, se ninguém ensinasse os bebês a falar, eles se expressariam naquele idioma original, determinou que dois irmãos gêmeos fossem tirados da mãe logo ao nascer e entregues a um pastor para que os criasse. O pastor recebeu ordens severas, sob pena de morte, de jamais pronunciar qualquer palavra na presença das crianças.

Quando completaram dois anos, o faraó mandou que se deixasse de alimentá-las, na suposição de que a pressão da fome faria com que pedissem comida em sua “língua natural”. Não se sabe bem o que aconteceu, mas tudo indica que o pastor, movido pela compaixão, não fez exatamente o que lhe havia sido ordenado. Pois o inverossímil relato enviado ao faraó informava que um dos meninos, faminto, havia pedido pão em cíntio, idioma falado antigamente na região que viria a ser a Ucrânia, na União Soviética. Assim, satisfeito com o desfecho da impiedosa pesquisa, Psamético decretou que o cíntio era a língua original da humanidade. Por incrível que pareça, a experiência seria repetida dezenove séculos mais tarde. O idealizador foi o rei germânico Frederico II (1194-1250), que pelo visto não se convenceu das conclusões do faraó. Certamente vigiado mais de perto, o experimento resultou no inevitável: os dois gêmeos morreram.

De Psamético I aos dias de hoje, passando por Frederico II, muitos outros homens igualmente curiosos se perguntaram qual teria sido e como seria possível reviver o idioma do qual brotaram todos os demais. Essa indagação se transformou modernamente numa área de pesquisa de ponta em Linguística, a ciência que estuda a evolução das línguas, suas estruturas e possíveis inter-relações no quadro histórico e social. Os estudos viriam confirmar a crença dos antigos. Segundo o linguista Cidmar Teodoro Pais, da Universidade de São Paulo, a comparação entre as várias línguas do planeta, tanto as ainda faladas quanto as já desaparecidas, revela efetivamente algumas características comuns que apontam para a possível existência de uma língua primeira, mãe de todas. Nesse ponto, a Linguística parece se afinar com as mitologias que descrevem a dispersão das línguas pelo mundo.

A mais conhecida delas é a história bíblica da Torre de Babel. Segundo o Antigo Testamento, a multiplicação das línguas foi um castigo de Deus à pretensão dos homens de construir uma torre cujo topo penetrasse no céu. As lendas chinesas contam que a divisão da língua original fez com que o universo “se desviasse do caminho certo”. Na mitologia persa, Arimã, o espírito do mal, pulverizou a linguagem dos homens em trinta idiomas. E um dos livros sagrados dos maias, o Popol Vuh, lamenta: “Aqui as línguas da tribo mudaram – sua fala ficou diferente. (…) Nossa língua era uma quando partimos de Tulán. Ai! Esquecemos nossa fala”.

Hoje muitos linguistas estão empenhados em passar da lenda à verdade histórica, mas a tarefa é de extrema dificuldade. O exercício da Linguística como ciência, por sinal, está longe de ser uma atividade simples ou compensadora. Ao contrário, linguistas frequentemente passam anônimos pelo mundo, ao contrário de outros escavadores do passado humano, como os arqueólogos e paleontólogos. Grandes nomes da Linguística deste século, os franceses Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste e o americano Noam Chomsky são ilustres desconhecidos para o público leigo. “Definitivamente”, resigna-se o linguista Flávio di Giorgi, da Universidade Católica de São Paulo, “esta ciência que se faz debruçado sobre manuscritos antigos, inscrições ou reconstituições de línguas não tem qualquer vocação para ser popular”.

Para quem gosta, porém. é um prato cheio. “Já me diverti muito estudando Linguística”, conta Teodoro Pais, um professor de óculos de lentes grossas, fala mansa e hábitos metódicos, no ramo há trinta de seus cinquenta anos de vida. Afinal, os atuais cinco bilhões de seres humanos se comunicam recorrendo a um estoque de cerca de três mil línguas espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Essas, mais outros milhares já esquecidas que deixaram algum tipo de registro escrito, foram agrupadas em doze famílias linguísticas importantes e cinquenta menos importantes.

Essas duas grandes arrumações familiares aparentemente nada têm em comum – e eis aí a suprema dificuldade dos pesquisadores: eles farejam semelhanças onde o que salta aos olhos são diferenças. As buscas, contudo, têm o estímulo das barreiras já derrubadas. Quem diria, por exemplo, que há algum parentesco, embora remoto, entre o português e o sânscrito, uma língua falada na Índia há milhares de anos, e ainda a sua versão moderna, o hindi? E, no entanto, o parentesco existe.

Descobriram os linguistas que esses idiomas descendem de um mesmo e único tronco, o indo-europeu, pertencendo portanto à grande família das línguas indo-europeias que inclui também o grego, o armênio, o russo, o alemão, entre muitas outras. Hoje, aproximadamente a metade da população mundial tem como língua nativa um idioma dessa família. Foi justamente a descoberta do parentesco entre o sânscrito e as línguas europeias, no século XVIII, que fez nascer a Linguística histórica, dedicada a investigar essas similaridades. A tese da origem comum foi proposta em 1786 por Sir William Jones, um jurista inglês cujo passatempo era estudar as culturas orientais. A partir de então, os linguistas europeus passaram a se dedicar a duas tarefas: uma, refazer passo a passo a árvore genealógica dessa família, trilhando a história de sua evolução; outra, reconstituir a língua perdida que dera origem a todas, o indo-europeu. Esse trabalho não se faz às cegas, ou por ensaio e erro. A pesquisa percorre o caminho aberto pelas leis linguísticas, resultantes de outros estudos, que mostram como os sons e os sentidos das palavras evoluem com o tempo, promovendo a transformação das línguas. Essas leis são estabelecidas a partir de comparações entre palavras. Por exemplo, do latim lacte e nocte vieram as formas leite e noite. Comparando-se os termos, percebe-se que o “c” (/k/) das palavras em latim virou “i” (/ĭ/) nos vocábulos em português. No século passado, o trabalho dos linguistas se apoiou fortemente numa lei formulada em 1822 pelo alemão Jacob Grimm (1785-1863), mais conhecido pelos contos de fadas que escreveu com seu irmão Wilhelm, entre os quais “Branca de Neve e os Sete Anões”.

A lei de Grimm afirmava ser possível prever como alguns grupos de consoantes se modificariam com o tempo nas línguas indo-europeias. Entre outras coisas, ele dizia que uma consoante forte ou sonora (pronunciada fazendo-se vibrar as cordas vocais) tendia a ser substituída por sua equivalente fraca ou surda (pronunciada sem vibração das cordas vocais). As consoantes /b/ e /p/ constituem um par desse tipo, assim como /d/ e /t/. As /b/ e /d/ são fortes, /p/ e /t/ são fracas, como se pode comprovar, pronunciando-as com a mão na garganta. Com base nessas leis, foi possível mostrar, por exemplo, que a forma dhar em sânscrito, que significa puxartrazer, originou o inglês draw, o alemão tragen, o latim trahere e o português trazer, todos com significado semelhante. O fonema /d/ da palavra em sânscrito virou /t/ nas outras línguas. Pode-se concluir ainda que a palavra em inglês evoluiu menos que nas demais, pois se manteve fiel ao som original do sânscrito.

Os linguistas puderam assim “estabelecer um modelo confiável das relações familiares entre as línguas”, conta o paulista di Giorgi, “construindo um modelo bastante aceitável do que teria sido a língua ancestral – o proto-indo-europeu”. O que se ambiciona, porém é uma descoberta muito maior. Dispondo das reconstituições dos ancestrais de grande parte das famílias mais importantes, os linguistas tentam achar relações entre as próprias protolínguas. O primeiro e maior obstáculo é justamente o material de que dispõem. Apesar de resultarem de cuidadosa montagem científica, as protolínguas não passam de modelos, pouco mais que sombras do que terão sido as línguas antigas. Algo como um dinossauro de museu em relação ao bicho verdadeiro.

“Nesse ponto, a análise avança com base na cultura, pois não se dispõem mais de documentos escritos”, explica Teodoro Pais, da USP, que conhece sânscrito e gostava de trocar cartas com os colegas em proto-indo-europeu. Toda língua produz e reflete cultura e não é à toa que, fundamentados nas palavras reconstituídas da protolíngua, os pesquisadores podem inferir com razoável margem de confiança os hábitos do povo que a falava. Com esses dados é possível construir pontes até outros grupos aparentemente não relacionados. Por exemplo, tanto nas línguas indo-europeias quanto no grupo semítico, as palavras homem e terra originalmente se confundem. Em hebraico, são respectivamente adam e adamah, ambas derivadas de uma raiz comum em proto-semítico.

Em proto-indo-europeu, a palavra dheghom tem os dois significados. A parte final originou o latim homo (homem) e humus (terra, solo). Assim, embora não haja parentesco etimológico algum entre as palavras semíticas e indo-europeias, é clara a semelhança quanto à maneira de pensar e classificar o mundo entre as populações de ambos os grupos linguísticos. As mais recentes descobertas da Arqueologia e até da Genética conduzem à mesma ideia: é possível agrupar as grandes famílias em famílias ainda maiores, um avanço formidável na busca da língua-mãe. Há mais de vinte anos, os linguistas russos Vladislav M. Illich Svitch e Aron Dolgopolsky propuseram que o indo-europeu, o semítico e a família das línguas dravídicas da Índia poderiam fazer parte de uma superfamília, chamada então nostrática. Na época, o trabalho foi encarado com desconfiança. Depois, ganhou alguma aceitação nos meios científicos. Há pouco, enfim, uma descoberta da Genética parece ter dado nova projeção ao trabalho dos soviéticos.

A partir de análises de grupos sanguíneos de várias populações, a equipe do geneticista Allan C. Wilson, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, concluiu que há um grande parentesco genético entre os falantes das línguas indo-europeias, semíticas e dravídicas. Isso quer dizer que, ocupando uma vastíssima porção do planeta, da Ásia às Américas, eles têm mais em comum entre si do que, digamos, com os japoneses ou os esquimós. Essa descoberta coincide de forma espantosa com a teoria da superfamília nostrática. Em outra frente, pesquisas arqueológicas e linguísticas estão finalmente determinando o local de origem do proto-indo-europeu – um dos objetivos dos linguistas desde o século passado.

Até os anos quarenta, os pesquisadores acreditavam que o berço do indo-europeu estava situado no norte da Alemanha e da Polônia. Essa teoria, sustentada por deduções bastante ingênuas, foi usada nada ingenuamente pelos nazistas para confirmar sua teoria de que a raça tida como pura dos arianos surgira ali mesmo. Os linguistas imaginavam que, se fosse possível estabelecer um pequeno vocabulário comum à maioria das línguas indo-europeias, estariam diante de algumas palavras localizadoras, sobreviventes do proto-indo-europeu, em cuja terra natal seriam ainda faladas. Uma dessas tentativas estabeleceu três palavras localizadoras – tartarugafaia (uma árvore) e salmão. O único lugar onde todas elas podiam ser encontradas era uma área da Europa Central entre os rios Elba, Oder e Reno, na Alemanha, de um lado, e o Vístula, na Polônia, de outro. Ali havia salmões, tartarugas e faias. Não havia tartarugas ao norte da fronteira alemã, faias a leste do Vístula nem salmões a oeste do Reno. O método acabou desacreditado, pois muitas das palavras localizadoras estão sujeitas a mudanças de sentido, não sendo portanto instrumentos confiáveis.

As pesquisas mais recentes afirmam que o proto-indo-europeu era falado há cerca de seis mil anos na Ásia e não na Europa Central. Dois trabalhos, um do americano Colin Renfrew, outro dos soviéticos Thomas Gamkrelidze e V. V. Ivanov, concordam ao apontar o berço do indo-europeu como o planalto da Anatólia, uma região que vai da Turquia à República da Armênia, que faz parte da União Soviética. Dali, movidos pela busca de terras férteis e de novos campos de caça, os indo-europeus migraram, há uns cinco milênios, seja para a Europa, seja para a Ásia. A corrida à procura da língua-mãe está apenas começando mas desde já nessa aventura científica não faltam algumas descobertas insólitas.

Uma delas é a incrível semelhança de palavras entre as línguas indígenas da América pré-colombiana e idiomas falados pelos povos do Mediterrâneo e Oriente Médio. Por exemplo, os índios araucanos do Chile usam a mesma palavra que os antigos egípcios, anta, para designar o Sol e a mesma palavra que os antigos sumérios, bal, para machado. A palavra araucana para cidade é kar, semelhante a cidade em fenício, que é kart. Há mais: a palavra maia thallac, que designa “o que não é sólido”, é semelhante a Thallath, o nome da deusa do caos na antiga Babilônia. Curiosamente, thallac lembra ainda thalassa, mar em grego, e Tlaloc, o deus asteca da chuva. Shapash, o deus-sol dos fenícios, é também o deus-sol dos índios klamath, no Oregon, Estados Unidos. Essas misteriosas semelhanças escapam a qualquer tentativa de classificação. Mas, como disse certa vez Albert Einstein, o mistério é a fonte de toda verdadeira ciência. Desde que, para resolvê-lo, não seja preciso negar comida a crianças, como fizeram um faraó egípcio e um rei germânico.

Superinteressante (Adaptado)