
Renata Dini *
A Metamorfose[1], de Franz Kafka[2], é uma daquelas peças que nos deixa pensando muito depois de terminá-la. Não é apenas a história de um homem que acorda transformado em um inseto, mas uma profunda reflexão filosófica sobre a alienação, a identidade e o absurdo da existência humana.
De um ponto de vista existencialista, a transformação da personagem Gregor Samsa pode ser vista como uma metáfora da sensação de estar preso em uma vida que já não reconhecemos como nossa. Quantas vezes nos sentimos estranhos em nossas próprias peles, desconectados de quem somos, espectadores da nossa própria vida ou do que os outros esperam de nós? Gregor, ao se tornar um inseto, representa essa sensação extrema de desumanização, de se tornar algo que não se encaixa mais no mundo, nem mesmo na sua própria família.
Kafka nos confronta com uma ideia chave na filosofia existencialista: o isolamento do indivíduo. Gregor, na sua nova forma, é incapaz de se comunicar, de ser compreendido ou aceito. Este isolamento não é apenas físico, é existencial. Aqui é onde ressoa o pensamento de Jean-Paul Sartre[3] e a sua ideia de que “o inferno são os outros”. Gregor é rejeitado e temido, e apesar de permanecer o mesmo por dentro, sua aparência o condena à solidão e ao esquecimento.
Além disso, a Metamorfose também nos fala do absurdo, um conceito que Albert Camus[4] desenvolve na sua filosofia. A transformação do Gregor não tem explicação nem sentido, e esse é precisamente o ponto. Em um mundo absurdo, as coisas acontecem sem razão aparente, e nós, como seres humanos, somos forçados a enfrentá-las sem ter respostas. Gregor não questiona por que ele se tornou um inseto; ele simplesmente tenta se adaptar, continuar com sua vida. Mas, no final, o absurdo esmaga-o.
Gregor perde seu valor aos olhos da sua família quando não consegue mais trabalhar nem atender às expectativas sociais. Sua transformação física reflete uma verdade mais profunda: somos vulneráveis a perder nosso lugar no mundo quando deixamos de cumprir os papéis que nos impõem.
A Metamorfose é um alerta sobre a fragilidade da identidade e a desconexão entre o ser humano e o seu ambiente. Kafka nos lembra que, neste mundo cheio de normas, expectativas e julgamentos, a verdadeira tragédia é perder a conexão com a nossa própria humanidade, e nesse processo, ser esquecido ou descartado por aqueles que deveriam nos entender.
A peça de Kafka deixa-nos uma pergunta perturbadora: quanto da nossa identidade é definida pelos outros?
* Professora Especialista na Rede de Taubaté.
[1] A Metamorfose (em alemão, Die Verwandlung) é uma novela escrita por Franz Kafka, publicada pela primeira vez em 1915.
[2] Franz Kafka (Praga, República Tcheca, 1883 — Klosterneuburg, Áustria, 1924): autor de romances e contos, considerado um dos escritores mais influentes do século XX. A maior parte de sua obra, como A Metamorfose, O Processo e O Castelo, está repleta de temas e arquétipos de alienação e brutalidade física e psicológica, conflito entre pais e filhos, personagens com missões aterrorizantes, labirintos burocráticos e transformações místicas.
[3] Jean-Paul Charles Aymard Sartre (Paris, 1905 – 1980): filósofo, escritor e crítico, conhecido como representante do existencialismo. Defendia que os intelectuais têm de desempenhar um papel ativo na sociedade.
[4] Albert Camus (Mondovi, 1913 – Villeblevin, 1960): escritor, poeta, filósofo, romancista, dramaturgo, jornalista e ensaísta franco-argelino. Atuou como jornalista militante envolvido na Resistência Francesa, situando-se próximo das correntes libertárias durante as batalhas morais do segundo pós-guerra. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957. Em seus trabalhos desenvolveu um humanismo baseado na consciência do absurdo da condição humana.